Covid-19 e o anseio por uma narrativa coletiva

Líder Narrativo no International Resource for Impact and Storytelling

 

Nestas últimas semanas, encontrei três relatórios diferentes observando que o curso da pandemia de Covid-19 não segue nossas expectativas sobre como uma história deve se desenrolar. Os três sugerem que esta falha narrativa explica parte da dificuldade de organizar uma resposta pública conjunta contra o vírus.

No primeiro artigo, Joe Pinsker no The Atlantic explica que a trajetória da pandemia não coincide com nenhum tipo de enredo a que estamos acostumados: ela é muito longa, elementos-chave da narrativa Covid estão continuamente em disputa, o vilão é um vírus impessoal, e há inúmeros finais falsos. Um psicólogo citado por Pinsker define o impacto disto como “fadiga narrativa”: nós –e os americanos em particular– estamos acostumados com histórias que refletem uma luta clara entre o bem e o mal, com o bem triunfando no final. Queremos uma história que passe definitivamente do mal para o bem, e nossos esforços mentais constantes e frustrados para fazer com que a pandemia de Covid se encaixe neste molde estão nos desgastando.

Pinsker cita um professor de psicologia que sugere que nos conformemos com uma estrutura narrativa mais realista. Por exemplo, a noção de que sempre haverá adversidade e temos que aprender a lidar com ela. Em vez disso, na ausência de uma narrativa comunitária satisfatória, as pessoas se concentraram no que isso significa para suas vidas individuais. Às vezes, veem isso como uma oportunidade de inspiração e crescimento pessoal; mais frequentemente, o consideram uma interrupção de sua “verdadeira história”, à qual mal podem esperar para voltar.

O segundo artigo surge de um episódio do podcast On the Media, e pergunta por que tantos americanos deixaram de prestar atenção ao vírus, mesmo quando os casos continuam aumentando. Um dos segmentos do programa é dedicado às formas habituais que as histórias populares tomam, o que contrasta com a curva da história de Covid. Em vez de seguir um arco claro com um começo, um ponto de virada e um fim, a história da pandemia fez ziguezagues caóticos de cima para baixo, e de baixo para cima. Isto se reflete nos gráficos de infecções e mortes que vemos nos jornais todos os dias. Não é uma história que prenda a atenção de ninguém por muito tempo. É um emaranhado sem sentido.

De acordo com o podcast, é exatamente por isso que tem sido tão difícil para as autoridades sanitárias transmitir mensagens claras e convincentes sobre como devemos responder. No início da pandemia, esperávamos uma história simples e clara: a vacina agiria como um salvador, vindo em nosso socorro e dando um final feliz à história. Quando isso não aconteceu, nossas esperanças foram frustradas e muitas pessoas decidiram que “diriam adeus à Covid”— embora o Covid ainda não tivesse se despedido de nós.

Tanto o artigo do Atlantic quanto o episódio de On the Media valem a pena (e eu recomendo muito assistir a esta palestra de Kurt Vonnegut sobre as formas das histórias, mencionadas no podcast).

O terceiro artigo, de Frederick Kaufmann no The New York Times, realmente me levou a refletir. Kaufmann faz muitas das mesmas observações sobre a pandemia que escapam de nossas tentativas de dar a ela uma forma narrativa familiar e satisfatória. Entretanto, ele termina com a ideia de que a Covid poderia nos oferecer uma nova maneira de ver as coisas, da mesma forma que Galileu, Darwin e Einstein transformaram as narrativas da humanidade sobre nosso lugar no universo. Kaufmann sugere que para atingir este novo entendimento devemos abandonar a “jornada do herói”, “substituindo-a por um mosaico de coragem coletiva, uma comunidade humana reunida para resistir à voracidade da natureza enquanto ela toma sua próxima forma épica de violência.”

A proposta de Kaufmann ajudou-me a articular uma reação incômoda que eu tinha a estes materiais: que procurar uma história relevante na forma da pandemia é, de certa forma, não entender o ponto. A Covid não é a única coisa que não nos dá um arco de história claro e um final claro e feliz. Na maioria das vezes, a realidade é implacável, caótica, um emaranhado aparentemente sem sentido de altos e baixos. Ela exige uma narrativa que dê forma e significado aos acontecimentos, sobretudo aos tristes e trágicos. E fazemos isso não contando a história do evento, mas contando a nossa história. Moldamos uma narrativa que nos lembra quem somos e reafirma os valores que orientam nossa resposta. Isso nos energiza e nos mantém em movimento. 

Um papel fundamental das lideranças é ajudar a fornecer essa narrativa, nos lembrar de nosso caráter e identidade coletivos, nos dar esperança e nos chamar para a ação. Os melhores líderes são os contadores de histórias e construtores de narrativas. E no caso da Covid, essa liderança tem estado quase completamente ausente. Esta ideia que nos foi apresentada –que a Covid é uma perturbação horrível, mas temporária, e que devemos fazer certas coisas na esperança de voltar ao “normal” – não é de modo algum uma narrativa. Que história que vale a pena contar já terminou com tudo voltando exatamente ao que era antes?

Como a pandemia da Covid, a invasão russa da Ucrânia também promete ser implacável, excessivamente longa, uma luta de altos e baixos sem um fim claro. E ainda assim, a liderança de Zelenskyy e outros ofereceram uma narrativa capaz de inspirar o mundo. Uma narrativa não sobre a guerra, mas sobre o que a Ucrânia é e quem são os ucranianos. 

A luta pelas vidas dos negros nos Estados Unidos é outro exemplo. O racismo estrutural é inexorável, assassinados pela polícia um atrás do outro, um impacto atrás do outro, sem um final feliz no horizonte. Mas líderes proeminentes mobilizaram as pessoas e forjaram esse “mosaico de valor coletivo” fornecendo uma narrativa: não sobre racismo, mas sobre o valor das pessoas (Black Lives Matter!), identidade comunitária, quem somos como nação e o que devemos aspirar a ser. Em cada caso há um conjunto de valores e uma visão de um futuro melhor que está além de nosso alcance, mas que podemos conseguir trabalhando juntos

A causa de nossa fadiga narrativa não é a Covid. É uma abordagem tecnocrática e calculada da gestão da saúde e da crise. Exigimos uma “política baseada em evidências” e pedimos às pessoas que “sigam a ciência.” Mas os fatos são frios e as evidências não são um motivo para agir. Assim, acabamos tendo que decidir o que fazer por conta própria, moldar nossas histórias individuais, fazer luto a sós e nos agarrar ao nosso próprio significado individual enquanto “voltamos ao normal” o mais rápido possível. 

O que necessitamos, porém, é de espaço para o luto coletivo, para o enfurecimento conjunto, para aprender a proteger e cuidar uns dos outros. A cura vem de encontrarmos juntos o significado que cada um de nós não pode encontrar por si só. Precisamos urgentemente de líderes que nos ajudem com isso, que nos ajudem a encontrar nossa narrativa coletiva.

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